Pedro Gordilho é um dos grandes advogados brasileiros, baiano de Salvador, e altamente competente. Pedro é das pessoas mais cultas e inteligentes que conheço, um grande amante da leitura, possui uma biblioteca espetacular, foi procurador do estado da Bahia e Ministro do TSE, ainda por cima é um pianista maravilhoso!
Estamos muito honradas pois Pedro escreveu uma crônica especialmente para o 40 forever.
MP
A LIBERDADE INDIVIDUAL, SEUS LIMITES E O DESAPEGO
(Em torno do filme “127 Horas”, do Diretor Danny Boyle)
PEDRO GORDILHO (*)
“Quanto mais luz, mais sombra”.
(Jung)
Aron Ralston (James Franco) é apaixonado por atividades ao ar livre. Mas quando uma rocha cai e prende-o num cânion remoto de Utah, a aventura do viciado em adrenalina torna-se o desafio da sua vida. Durante os cinco dias seguintes, Ralston embarca numa memorável jornada pessoal, na qual ele revive as lembranças de sua família e amigos, bem como analisa sua própria coragem e ingenuidade – até conseguir transformar a adversidade em triunfo!
“A única coisa que sei é que nada sei”, dizia Sócrates. E acrescentava: “(…) o fato de saber isso, me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa”. É o principio que vem de todos aqueles que nos legaram o poder do pensamento, a força do pensar como o grande agente transformador. (Hobsbawn). Embora eu também nada saiba, pelo menos aprendi a apreciar o mundo. A alvorada sobre o mar do Porto da Barra, as curvas barrocas das praias de Santo André, em Santa Cruz Cabrália, a 5ª Sinfonia de Beethoven e a 9ª de Mahler, sinfonias do destino e do triunfo. A obra completa de Thomas Mann. A mais importante obra de memória de todos os tempos, Memórias de além Túmulo, de René de Chateaubriand, a obra de Rachmaninov e de Stravinsky, e muito mais.
Tenho presente que os heróis verdadeiros se salvam sozinhos porque tomam uma iniciativa, eles não se deixam levar pela vitimização, são eles os verdadeiros condutores do infinito. Não é sem razão que o livro teologal do Eclesiastico, com suas verdades, suas certezas e suas revelações, declama que “desde o princípio Deus criou o homem e o entregou ao poder das suas próprias decisões”. Ele pôs o homem diante do fogo. Ele pôs homem diante da água. E o homem poderá estender a mão para aquilo que ele quiser. Ele é livre. E o que é a liberdade? Responde Cecilia Meirelles, em versos de rara beleza: “Liberdade, essa palavra / que o sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda”.
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Freud e Jung. Dois titãs na busca do fundamento primeiro das flamejantes pulsões humanas, que antecedem a liberdade e que podem ofuscá-la. Para Freud, é o instinto sexual. O Freud mais tardio acentuava, paralelamente, uma tendência para o prazer negativo, ou seja, o impulso de morte. Ao lado do corpo e das pulsões situa-se o ego. Aos instintos sexuais, que constituem a grande propulsão, contrapõem-se as pulsões do ego. O ego, sabemos todos, afirma, nega e censura as pulsões. Como disse Freud, ele é o poder “que vai dormir à noite e então ainda maneja a censura do sonho”.
Mas o ego não seria suficiente para a censura se não existisse, acima dele, o superego, ou seja, o ideal do ego. Quer dizer o superego é o outro conteúdo do ego, ele representa a nossa relação parental. Ele é o defensor do mundo interior, ele é a origem da consciência e do sentimento de culpa. Ele é o germe a partir do qual se formaram todas as religiões. Representando o pai e a mãe, o superego observa, ameaça e conduz o ego, como em nossa infância nossos pais faziam conosco. O ego, como todos sabem, é o grande defensor dos direitos do mundo exterior. Já o superego, em contrapartida, é o defensor do mundo interior.
O mundo interior, que tem o seu defensor no superego, permanece sendo sempre o da libido ou dos impulsos reprimidos. O id dessa libido é e permanece sendo, como explicou Freud, o reino inconsciente da pulsão que preenche o corpo, que nos envolve totalmente, conforme o seu lado animal, assim como no seu aspecto de superego. Portanto, para compreensão dessas proposições, o mundo interior, que tem seu defensor no superego, permanece sendo sempre o da libido ou dos impulsos reprimidos. Numa palavra, o id inconsciente do homem. O que a psicanálise ou as terapias fazem é agir como instrumento que deverá permitir ao ego a conquista progressiva do id.
Pulsões não exteriorizadas, experiências inconclusas, feridas e decepções esquecidas continuam a arder em nossa alma. Elas desapareceram da consciência do ego, mas não desapareceram da alma, da nossa alma. É delas que provêm a sensibilidade aparentemente infundada, os excessos, a reação exagerada, a ação neurótica, os transtornos compulsivos.
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Os dois gigantes da alma humana divergiram num dado momento. Para Freud, o inconsciente é o repositório de todos os elementos inferiores da nossa personalidade. Já Jung insiste em ser o inconsciente a matriz do poço artesiano do qual brota a criatividade. Da sombra nasce a luz. A luz vem da sombra do inconsciente, ensina. Por isso deu-se a ruptura entre eles.
Como verificam, estamos perpassando, nessa visão preambular, o quadro em torno do qual gravita a alma humana, para chegar à historia do nosso filme e tentar explicar os limites da liberdade individual.
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Vimos que nosso herói é um auto-suficiente. Ele é totalmente livre e desdenha das informações que, passadas a outras pessoas, teriam evitado a auto-mutilação, teriam lhe ajudado a lograr a libertação. Ele quer adrenalina transbordando, transitando num movimento permanente, sem cessar, dentro dele. Mas se dá mal. Isso não é tudo, é apenas uma parte do todo. O homem não é uma ilha. Os sinos dobram pelo homem, como disse o grande poeta, do final da Idade Média, John Donne. Mas é preciso que os sinos saibam onde está o homem. E nesse herói, livre como é, não se mostra aos sinos para que eles dobrem em seu favor. Confia apenas no seu “taco”, na sua sorte. E se dá mal, como visto.
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Temos no filme “127 Horas” uma historia aparentemente linear, simples, horizontal. Mas só aparentemente. As pessoas com as quais eu tratei da historia desse filme mostram-se surpresas ao saber que o filme traz, além de uma memorável jornada, considerações que merecem muito mais do que a história de um jovem que é obrigado a cortar o braço. É muito mais do que isto. Este filme mostra, para mim, muito mais do que a supressão do antebraço. Mostra uma historia de desapego, que é uma das mais difíceis decisões que nos cabe tomar em momentos culminantes da nossa vida.
O nosso herói é um homem bem formado. Aparentemente sem problemas existenciais. É apenas um viciado em adrenalina. Atravessaria, serenemente, qualquer exame psicológico. Não haveria de interessar nem a Freud nem a Jung. Vem de uma família bem composta, normal, feliz. Mas abusa da liberdade com que foi contemplado. Pai, mãe, irmã, todos saudáveis. Para continuar livre, é imperativo que se desprenda.
Esse é que é o grande ensinamento, que tem aplicação em cenários variados de nossa jornada humana. Nosso herói morreria se insistisse em salvar o ante-braço. Assim acontece, a meu juízo, quando existem toxinas nas relações entre amigos, nas relações afetivas. Assim acontece nos casamentos sabidamente marcados por mentes inquietas, capazes, para dominar ou para atender impulsos patológicos, de mutilar ou destruir o parceiro, como a pedra do filme nos mostrou com todo seu peso. Era preciso, era indeclinável, absolutamente indeclinável, o desprendimento, a rejeição, o desapego, para nosso herói viver e voltar a ser livre. E ele assim fez.
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Termino com os versos do gênio de Fernando Pessoa que, com poucas palavras, contemplam aquilo que eu necessitei de tanto tempo para declamar nesse descolorido palavreado: “(…) Desapegar-se, é renovar votos de esperança de si mesmo. É dar-se uma nova oportunidade de construir uma nova história melhor. Liberte-se de tudo aquilo que não te tem feito bem”.
Para ser livre, nosso herói desapegou-se de uma parte do bem da vida, que nos é dada inteira. Ele agiu com coragem. Fez o certo e seguiu livremente seu caminho.